28 fevereiro 2013

Sincronicidade

Houve uma época em que eu seguia uma seita de origem oriental e, nessa seita, eles acreditavam no que chamavam de “ mundo espiritual”. Acreditavam que não existia reencarnação, mas os espíritos se comunicavam diretamente conosco. Dois mundos paralelos com vibração energética diferente, mas que se comunicavam quando havia brechas e/ou afinidades.

Um belo dia, estava eu atrasada , indo buscar as crianças na escola, quando tive a exata impressão de ter, ao meu lado, um ser de luz, de quem eu só via os pés, bem limpinhos e branquinhos, com unhas redondas e bem polidas. Como por pensamento ele me dizia, em inglês, que eu olhasse bem para os pés dele e que confiasse nele. Porém, que desconfiasse de aparições que não mostrassem os pés. Quase bati o carro por causa dessa sensação e achei melhor encostar o carro num lugar seguro. Peguei uma caneta e um bloco ( sempre tenho uma caneta e um bloco) e anotei tudo o que ele ia me passando por uma espécie de telepatia, uma comunicação sem palavras. Disse seu nome, Shong Lou Wang. Aflita com o horário, não conseguia mais me concentrar e então ele disse que eu precisava ser mais vertical, ter mais confiança na minha intuição, ser bem louca, tão louca quanto eu achasse que poderia ser, pois o mundo precisa de gente louca que faça coisas diferentes. Hã!

Cheguei a desenhar com canetinha colorida a imagem que eu achei ter visto, mostrei para o chinês da lojinha do bairro, ele disse que aquele era um sábio, o que para nós ocidentais poderia ser um anjo. Outras pessoas, de outras crenças já o viram perto de mim, meu filho sonhava com ele.

Tempos depois fui para São Francisco - Califórnia - ao sair do aeroporto, na rua, confesso, estava perdida, não sabia para onde ir. Isso aconteceu nos anos 80, as pessoas viajavam menos, não havia wifi, nem celulares, nem mapas no Google. Fui para um ponto de ônibus, devia estar com cara de assustada, quando um senhor chinês, bem velhinho, se aproximou. Bem vestido, inglês fluente, perguntou se podia me ajudar. Sim, claro que podia, como chegar à rua tal, número tal, hotel Holiday Inn. Sorriu, fofo. Muito fácil, muito fácil...explicou com calma e clareza. O ônibus chegou e eu cheguei onde tinha que chegar. Amei a cidade, me senti em casa. Comprei uma caixinha de música só para poder ir lá, a hora que quiser,  em pensamento.
Nos anos 90 minha filha se mudou para uma cidadezinha próxima a São Francisco e eu tive outras oportunidades de curtir o lugar. Meu sábio chinês às vezes aparece, fica triste quando me esqueço dele, está sempre à disposição. Achei uma foto de uma turminha de sábios chineses e ele está entre eles. 

20 fevereiro 2013

Hora do rush...


Trânsito infernal, tudo parado e o motor do carro dá seu último suspiro bem no meio do viaduto. Buzinas não me estressam porque não posso fazer nada. Chove torrencialmente não vou sair para pedir ajuda para não estragar meu sapato novo de R$600,00. Desligo o rádio: A Voz do Brasil agora, não! Aparece um guarda envolto em plástico, bate no vidro e me manda ir para o acostamento. Desligo o motor, dou a chave na mão dele e me arrasto para o banco do passageiro. É claro que ele não pega, reclama e gesticula mandando os outros carros desviarem. O congestionamento começa a diluir. Um bom samaritano para no acostamento e vem ajudar, os dois encostam meu carro, eu agradeço. Ligo para umas quatro ou cinco pessoas pedindo ajuda, ninguém pode. Meus filhos me chamam no viva voz perguntando se podem fazer pipoca – estão com fome. As luzes da rua acendem e o guincho não chega. Já fumei meio maço de cigarros, arrumei a bolsa, lixei as unhas, falei com minha mãe. As crianças agora querem saber se podem pedir pizza, ouço a televisão à toda e a trilha sonora da novela Salve Jorge!

15 fevereiro 2013

Luto



Velório digno, caixão com alças douradas, muitas flores abafando melancolias. Não vejo mais meu irmão, vejo um boneco de cera bem vestido e descorado. E agora? Como vamos fazer? – pergunto em pensamento. – Agora, nada. Não é mais problema meu – responde o fantasma sobrepairando o corpo. Pescávamos girinos no riachinho, fazíamos pipa com bambu, jornal e cola de farinha. Inventamos um cineminha com tiras de gibi, ouvimos Beatles e Rolling Stones, trabalhamos juntos com a mesma afinidade dos tempos de criança. Semana passada, fui lhe fazer companhia: cantamos. Sabíamos que era uma despedida, eu quis falar, você não deixou. Estou saindo da empresa, sem você lá não faz sentido. E agora? Agora nada. A vida continua desfalcada.

05 fevereiro 2013

Mauro 5

Hoje não fui. Nem ontem. Piorei.
Vou mandar um e-mail para a clínica.

01 fevereiro 2013

Mauro 4


Hoje ele não passou gel e acertou a barba, ou acertaram para ele. Ficou uma espécie de cavanhaque sem bigode - deve ser moda - com um tufinho abaixo do lábio inferior. Fones de ouvido ligados no tablet, que agora tenho certeza fazer parte do seu corpo,  e eu consigo ouvir a batida do rock.  Chego cinco minutos atrasada, ele me diz que não tem importância, eu fico olhando para a parede achando que mais alguém vai chegar. Sexta-feira, as pessoas faltam e eu espero mais uns dez minutos até que sou convidada a subir. Mesma rotina, mesmos comentários mecânicos e eu lá, cheia de eletrodos em pontos que não estão doendo,  tomando choquinhos.
- A dor é mais no braço, bem aqui ó...aqui.
 - Mas no pedido está escrito inflamação no ombro. Quando apitar avisa.

Não vou avisar.

Mauro 3

- Pode subir. Como a senhora passou de ontem pra hoje? Melhorou?
- Pouquinho.
- E o trabalho? Tudo bem? Como é que tá lá?
- Tudo bem.
- A senhora é séria assim mesmo?
- Sou.
- Por quê?
- Porque sou uma senhora, responsável e com dor.
- Não dá risada nunca?
- Na hora certa e no lugar certo.
- Mas dar risada é bom, não é? Descontrair, fazer piada, né?
- Claro que é, mas eu estou com dor. Você não vai fazer ultrassom?
- Sabe o que é? Tem que ficar passando e eu perco tempo, não posso ir atendendo os outros. O tense é melhor, eu  ligo e deixo a senhora aí enquanto atendo os outros. Tá doendo?
- Tá.
- É assim mesmo.
- E você quer que eu fique dando risada...

Mauro 2

- Eu trouxe a ressonância e a tomografia.
- Não precisa, eu já sei o que é.
- Tendinite, epicondilite... o médico disse que...
- É, eu já sei. Vamos lá.
- Choquinho de novo? Ontem doeu muito.
- Hoje não vai doer. Quando apitar me avisa, tá bom?

- Mauro, Maurooo
- Péra aí.
- Caiu tudo aqui...
- Apitou?
- Não.
- Então espera.

- Essa fita crepe é uma porcaria. Vou encher de fita pra não cair. Pronto. Quando apitar avisa.

- Mauro, desculpe, mas tá doendo.
- Apitou?
- Não. Mas tá doendo.
- É assim mesmo.