21 fevereiro 2016

Saco cheio



Zé acorda de saco cheio da vida. Não quer nada com nada. Todo dia a mesma rotina besta, levantar, tirar o pano da gaiola, alimentar e dar água aquele pequeno ser aprisionado, tomar, ele próprio, uma chuveirada fria, barbear-se, vestir-se, caminhar até o café. Por quê? Para quê?

Em ritmo lento, prossegue o ritual. Desenrola a porta de ferro, liga a máquina, passa pano no balcão, depois nas mesinhas. A cidade está parada. Ele olha no relógio para ver se não havia se enganado no horário. Não, eram oito horas mesmo. Dá uma varrida na calçada, junta o lixo na pazinha, joga no latão.

Prepara um café e senta-se como se fosse um freguês. Não passa ninguém na rua, que saco! Fica ali um pouco, tamborilando os dedos na mesa, balançando o pé. Resolve então assumir o mau humor. Levanta, lava a xícara que usou, recolhe as mesinhas, baixa a porta de ferro, pendura uma folha de papel com um volto já mal escrito, põe a chave e no bolso e sai andando. Só depois de um tempo é que começa a apreciar o cenário. Percebe os detalhes dos prédios, os desenhos das grades de ferro, a beleza das árvores. Começa a prestar atenção nos rostos das pessoas, um sem fim de dessemelhanças andando depressa.

Zé não havia reparado o quanto as calçadas são esburacadas. Continua sem rumo e se sente outra pessoa. Repara na loja de telefonia, no fruteiro, na banca de jornal, no café... Sentiu o cheiro e parou. Era um lugarzinho fuleiro, parecido com o seu. Por que não? Entrou. Procurou uma mesa e pediu uma média. Era bom ser freguês para variar. O relógio cuco marcou onze horas e Zé reforçou o pedido: uma média, um pão na chapa e um pedaço de bolo. Apreciou ser servido. Sentia-se bem agora. Procurando o banheiro, tentou abrir uma porta meio emperrrada, que aparentemente dava em um beco, atrás do café. Forçou para cima, para baixo, sacudiu, deu um murro acima do trinco. Por fim, bem devagar, com a certeza de que conseguiria, suspendeu o trinco e virou. A porta abriu. Não era o banheiro, mas mesmo assim ele entrou...

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