27 dezembro 2015

Sorte

De vez em quando dona Samira aparecia para pedir café torrado na hora e moído mais fino, que só o Zé sabia preparar. Geralmente passava lá quando ia à catedral ortodoxa, era apaixonada por um padre há anos, parece que ele também gostava dela, amor platônico, só suspiros e olhares: a religião sempre estava em primeiro lugar. Samira era devota, participante na comunidade, de vez em quando lia a sorte na xícara de café para amigas que precisassem de conselhos, fazia uns pasteizinhos de massa de ricota e recheio de presunto que eram uma delícia.

Um dia Zé disse que queria aprender a fazer café árabe. Ela concordou, desde que ele tivesse os apetrechos certos, senão não ficava bom. Fariam o café para ler a sorte dele.

- O que é que eu tenho que comprar, dona Samira? Onde vou achar essas coisas?
- Você tem que ir à rua 25 de março. Pega o metrô aqui perto, desce na São Bento, pega a Ladeira Porto Geral, num instante você está lá. Pode ir no domingo, está tudo aberto. Xícara não precisa, essa branca que você tem serve. Açúcar também tem aqui e o pó que você prepara está muito bom, está ótimo! Água filtrada, melhor.
- Tudo bem dona Samira, que mais precisa?
- Um bule especial com um cabinho de madeira. Já viu? Lá na 25 tem, você compra um. Compra um maior, assim, se algum dia alguém pedir você faz café árabe aqui. Compra xicrinhas sem asa também, é bonito servir direito, numa bandeja redonda. Depois que você tiver tudo, eu passo aqui e a gente faz o café, está bem? Ah, não se esqueça de comprar cardamomo, são umas sementinhas que dão um sabor especial.

Estava ótimo! Zé comprou tudo, e dona Samira ensinou: cinco xícaras de café de água, duas colheres de chá de açúcar, cinco colheres de chá de café em pó e cardamomo. Ponha para ferver a água em fogo médio, acrescente o açúcar, o pó de café e mexa. Quando subir abaixe o fogo, mexa; deixe ferver de novo, tire do fogo e ferva mais uma vez. Cuidado para não derramar enquanto ferve. Aguarde uns instantes para o pó assentar, sirva sem encher demais a xícara.

Ficou delicioso. Quando terminou de beber, dona Samira cobriu a xícara com o pires e pediu para Zé segurar a xícara tampada com a mão direita e dar três voltas sentido anti-horário, depois desvirar e esperar escorrer. Esperou uns minutos e mostrou o desenho que a borra do café havia formado no fundo. Ficou olhando concentrada, depois falou:

-Vejo caminhos abertos para você, muito trabalho, dinheirinho entrando, está vendo as moedinhas aqui? Dinheiro entrando, pouquinho, mas tem. Olhe aqui no fundo, tem duas mulheres, um coração dividido ao meio. Tristeza, muita tristeza. Muitas pessoas na sua vida... Olha aqui que engraçado, tem uma criança. Você tem filho, Zé?

Dona Samira foi falando, descrevendo as figuras, apontando e Zé não conseguia ver nada. Achou que o cardamomo era um tipo de droga. Estava impressionado como a boa senhora adivinhava até o que ele estava pensando. No final, ela pediu para Zé colocar o dedo indicador no fundo, virar a xícara e pensar em algo que ele queria que acontecesse. Ele fez, pensou, limpou o dedão no avental e ficou esperando.

- O que você pediu vai acontecer com sucesso. Você vai conhecer umas pessoas que estão muito próximas daqui, mas vocês nunca se encontraram. Sua vida vai mudar. Para sempre! Gostou? Espero que sim. Faça o café várias vezes, até acertar o ponto. Qualquer dia desse eu venho aqui provar. Agora tenho que ir até a igreja.


E lá foi ela em seu passinho apertado, dando adeuzinho e sorrindo.

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