17 novembro 2015

Frequentadora assídua

Todos os dias, lá vinha ela, logo cedo antes de ir para a faculdade, depois voltava no meio da manhã na hora do intervalo, e mais uma vez antes de ir para casa. Parecia uma anoréxica, um fantasma. Zé até gostava dela, achava estranho porque pedia café duplo, forte, sem açúcar. Sempre segurando livros, colocando o cabelo para atrás da orelha e ajeitando os óculos, fungava. Não gostava de conversar, suas mãos tremiam ao segurar a xícara, se batesse um vento forte ela saía voando. Um dia, assim sem mais nem menos, comentou que a família não gostava dela, que eram uns idiotas e que se pudesse os mataria, um por um, lentamente. Mas que, pensando bem, não seria capaz de crimes perfeitos, daria muito trabalho se livrar dos corpos. Pensou em suicídio,  causaria mais impacto e eles se sentiriam culpados.

Contam que certa noite perambulava pela casa, feito assombração, pálida, descabelada, de camisolão de cambraia e pés no chão. Pupilas dilatadas, coração disparado por overdose de cafeína, não encontrava o sono, a agonia lhe corroía o peito.
Desceu as escadas no escuro sentindo a madeira velha dos degraus rangerem a seus pés. Parou no meio da sala e ficou olhando a luz da rua a entrar pelo janelão envidraçado e fazer listas no tapete. A noite tornava tudo mais belo, gostava do silêncio, daquele cheiro de dama da noite que vinha do jardim. Ficou ali, pensando. Olhou suas mãos, tocou seu rosto, cruzou os braços em torno de si mesma num abraço solitário, começou a chorar em silêncio para não acordar o resto da família. Família? Não.Estranhos sob o mesmo teto, uma gente esquisita que não fazia a menor ideia de quem ela era. Neuróticos, não perdiam a oportunidade de humilhá-la!
Malditos! Um dia ainda iria se vingar! Poria fogo na casa, envenenaria a comida, cuspiria no doce de abóbora. Mais uns dias e teria o prazer de riscar de ponta a ponta o carro novo do pai, picar a jaqueta de couro da mãe. Não. Picar não, não seria preciso: cortaria um pedacinho bem no meio das costas, derrubaria um vidro inteiro de esmalte importado na manga, ou quebraria o salto do Christian Louboutin legítimo. Poria um anúncio de garota de programa no jornal, com o celular e o e-mail da sua irmã. Publicaria na Internet aquela foto de seu irmão pelado que ela um dia descobriu no meio dos livros, enquanto fuçava seu quarto às escondidas.
Sentia-se poderosa enquanto sonhava com sua doce vingança. Foi até a cozinha e voltou com uma vela acesa, um bloco e uma caneta bic. Sentou-se na beirada da cadeira da sala de jantar e começou a escrever. A vela foi se consumindo, a chama aumentando e ela, lá... absorta, escrevendo... Gritou quando sentiu algo macio passando sobre seus pés e subindo pelas suas pernas brancas que nunca tinham sido depiladas.
- Um rato! Um rato! Um rato! - gritava correndo em círculos enquanto os malditos desciam a escada correndo para ver o que estava acontecendo.
O irmão conseguiu agarrar o hamster que havia fugido da gaiola, a irmã reclamou bastante e subiu a escada, os pais ficaram em choque, aparvalhados. Nem foram atrás da menina quando ela saiu correndo pela rua.  

Um dia, um casal passou em frente ao café. O homem perguntou pela frequentadora assídua enquanto a mulher torcia um lenço que tinha nas mãos.  Zé teve de dizer que ela nunca mais voltou.


Um comentário:

Nine disse...

Gostei do detalhe da camisola de cambraia...