Jardim
Alheio
Em Os Malaquias, a jovem escritora Andrea Del
Fuego faz uma bela homenagem aos seus antepassados e ganha o Prêmio Saramago
2011. Conta a história dos seus bisavôs, que morreram atingidos por um raio deixando órfãos o avô e outros tios avós. Com
narrativa emotiva, linear e encantadora a obra premiada já define o talento da
autora na qualidade da trama bem construída.
Já o novo romance As Miniaturas, lançado em 2013 pela Companhia das
Letras, Andrea surpreende pela criatividade. O conceito que perambula nas
conversas literárias de que tudo já foi escrito perde seu rumo nas páginas do
livro onde a história é contada por uma trindade: Oneiro, Mãe e Filho. Entre o
urbano cru e o onírico-burocrático, a trama se desenrola no cenário de uma
cidade que parece ser São Paulo. O ponto principal é o Edifício Midoro Filho,
um prédio grande, com organizado e constante fluxo de pessoas que precisam
sonhar - apesar de não se lembrarem de nada depois. “ O Edifício sugere o sonho
usando o próprio, assim como a gramática usa a palavra para falar da
frase.” - explica, perspicaz, a autora.
Oneiros e sonhantes encontram - se nas salas quadradas quase assépticas
do estranho edifício: os primeiros como uma espécie de terapeutas dos sonhos;
os outros como pessoas comuns que estão lá para sonhar. As duas palavras - oneiros e sonhantes - causam
breve estranhamento no início, mas este logo se dissolve e acaba estabelecendo credibilidade
dentro de um sistema que oscila entre o real e o imaginário. Os estímulos para
o processo de sonhar, apresentado pelos oneiros, são “miniaturas escuras, com brilho de plástico novo”, devidamente
catalogadas e que podem ser um dinossauro, um rato ou um chapéu de Napoleão.
“ Quando os olhos dão cambalhotas debaixo da pálpebra, é sinal de que o
sonhante está apto, vendo sistemas solares, invadindo a Rússia, emagrecendo a
mãe, perdoando cães, dando palestra em Mônaco. Vou além das miniaturas, embora
eu não assista palestra e nem saiba onde fica a Rússia.” Essa é a voz do oneiro
- soprada por Andrea – que depois explica sua metodologia para crianças,
adolescentes, adultos e anciãos.
Um oneiro conceituado deve ser muito bem treinado, deve
seguir procedimentos e saber interpretar os sonhos. As leis são claras: não é
permitido a um oneiro atender duas pessoas que sejam parentes. O que narra
história se dá conta, um dia, que atendia a mãe e filho, e fica obcecado pelos
dois. Sofre consequências dentro do rígido sistema do edifício.
A mãe cuja narrativa arrasta o leitor para dentro de
seus pensamentos, é motorista de taxi e luta para criar sozinha o filho
adolescente. O filho é frentista em um posto de gasolina e sabe que a única
maneira de silenciar a mãe é obedecer.
Outros personagens aparecem, como o gerente do posto –
ex-amante da mãe – , a jovem esposa e seu bebezinho, uma
vidente, que a mãe consulta para tirar dúvidas sobre a sexualidade do filho. Já o oneiro,
que atende mãe e filho, recorre a uma “vidanta” do Edifício Midoro Filho para
enxergar com mais clareza o próprio trabalho. O humor aparece
em alguns momentos, na dose certa, como na descrição das fotos de capa do
Algodão, publicação interna que circula no Edifício. “ Na capa de agosto puseram um camelo com
deficiência visual, usava um óculos para não impressionar os leitores com os
buracos no focinho.” [...] “na capa de abril era uma borboleta idosa com falha
nas asas.” Divertido
Andrea diz em entrevista que aplaude os escritores Ivana
Arruda Leite e Marcelino Freire. Com eles tem também, segundo ela, o privilégio
de compartilhar trabalhos. Diz também que, dos clássicos, “ouve” William
Faulkner, Nabokov, Stendhal, Kafka, Melville e Machado de Assis. Concluo que desse
amálgama precioso a autora tira a prata cristalizada e a transforma em maneira
peculiar de colocar ideias e palavras no papel, e estas fluem como uma voz
suave e resoluta a seduzir o leitor.
A realidade urbana e as pessoas comuns, oneiros e
sonhantes, videntes e vidantas se entrelaçam
com jogo do bicho, tarot, interpretação dos sonhos e outros misticismos, trazem
a mensagem: “se o sujeito
que comanda os sonhos não é capaz de prever nada, os sonhos também não são.”
Além dos personagens tão bem estruturados que parecem
com pessoas que encontramos a todo o momento na cidade grande, o próprio
Edifício
Midoro Filho é um personagem com corpo – estrutura física, as salas
os corredores – e alma – com conceitos rígidos e mistérios. O taxi vem
a ser a segunda pele da mãe, o posto de gasolina, uma arena onde de tudo
acontece, a Kombi que vende comida, tem jogo do bicho e expõe fotografias, a
segunda Kombi – sonho de consumo – e até máquina fotográfica do filho têm tanta
importância quanto as pessoas. Todos esses elementos, mais a fluidez do texto e
a dinâmica de 3 narradores ajudam a constituir o organismo independente,
inteligente e autossuficiente que é o brilhante As Miniaturas.
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