18 agosto 2014

AS MINIATURAS – ANDREA DEL FUEGO – COMPANHIA DAS LETRAS 2013


Jardim Alheio

Em Os Malaquias, a jovem escritora Andrea Del Fuego faz uma bela homenagem aos seus antepassados e ganha o Prêmio Saramago 2011. Conta a história dos seus bisavôs, que morreram atingidos por um raio deixando órfãos o avô e outros tios avós. Com narrativa emotiva, linear e encantadora a obra premiada já define o talento da autora na qualidade da trama bem construída.

Já o novo romance As Miniaturas, lançado em 2013 pela Companhia das Letras, Andrea surpreende pela criatividade. O conceito que perambula nas conversas literárias de que tudo já foi escrito perde seu rumo nas páginas do livro onde a história é contada por uma trindade: Oneiro, Mãe e Filho. Entre o urbano cru e o onírico-burocrático, a trama se desenrola no cenário de uma cidade que parece ser São Paulo. O ponto principal é o Edifício Midoro Filho, um prédio grande, com organizado e constante fluxo de pessoas que precisam sonhar - apesar de não se lembrarem de nada depois. “ O Edifício sugere o sonho usando o próprio, assim como a gramática usa a palavra para falar da frase.”  -  explica, perspicaz, a autora.
Oneiros e sonhantes encontram - se nas salas quadradas quase assépticas do estranho edifício: os primeiros como uma espécie de terapeutas dos sonhos; os outros como pessoas comuns que estão lá para sonhar.  As duas palavras - oneiros e sonhantes - causam breve estranhamento no início, mas este logo se dissolve e acaba estabelecendo credibilidade dentro de um sistema que oscila entre o real e o imaginário. Os estímulos para o processo de sonhar, apresentado pelos oneiros, são “miniaturas  escuras, com brilho de plástico novo”, devidamente catalogadas e que podem ser um dinossauro, um rato ou um chapéu de Napoleão.
“ Quando os olhos dão cambalhotas debaixo da pálpebra, é sinal de que o sonhante está apto, vendo sistemas solares, invadindo a Rússia, emagrecendo a mãe, perdoando cães, dando palestra em Mônaco. Vou além das miniaturas, embora eu não assista palestra e nem saiba onde fica a Rússia.” Essa é a voz do oneiro - soprada por Andrea – que depois explica sua metodologia para crianças, adolescentes, adultos e anciãos.

Um oneiro conceituado deve ser muito bem treinado, deve seguir procedimentos e saber interpretar os sonhos. As leis são claras: não é permitido a um oneiro atender duas pessoas que sejam parentes. O que narra história se dá conta, um dia, que atendia a mãe e filho, e fica obcecado pelos dois. Sofre consequências dentro do rígido sistema do edifício.
A mãe cuja narrativa arrasta o leitor para dentro de seus pensamentos, é motorista de taxi e luta para criar sozinha o filho adolescente. O filho é frentista em um posto de gasolina e sabe que a única maneira de silenciar a mãe é obedecer.

Outros personagens aparecem, como o gerente do posto – ex-amante da mãe  –  , a jovem esposa e seu bebezinho, uma vidente, que a mãe consulta para tirar dúvidas sobre a sexualidade do filho. Já o oneiro, que atende mãe e filho, recorre a uma “vidanta” do Edifício Midoro Filho para enxergar com mais clareza o próprio trabalho. O humor aparece em alguns momentos, na dose certa, como na descrição das fotos de capa do Algodão, publicação interna que circula no Edifício.  “ Na capa de agosto puseram um camelo com deficiência visual, usava um óculos para não impressionar os leitores com os buracos no focinho.” [...] “na capa de abril era uma borboleta idosa com falha nas asas.” Divertido
Andrea diz em entrevista que aplaude os escritores Ivana Arruda Leite e Marcelino Freire. Com eles tem também, segundo ela, o privilégio de compartilhar trabalhos. Diz também que, dos clássicos, “ouve” William Faulkner, Nabokov, Stendhal, Kafka, Melville e Machado de Assis. Concluo que desse amálgama precioso a autora tira a prata cristalizada e a transforma em maneira peculiar de colocar ideias e palavras no papel, e estas fluem como uma voz suave e resoluta a seduzir o leitor.

A realidade urbana e as pessoas comuns, oneiros e sonhantes,  videntes e vidantas se entrelaçam com jogo do bicho, tarot, interpretação dos sonhos e outros misticismos, trazem a mensagem: “se o sujeito que comanda os sonhos não é capaz de prever nada, os sonhos também não são.”
Além dos personagens tão bem estruturados que parecem com pessoas que encontramos a todo o momento na cidade grande, o próprio Edifício Midoro Filho é um personagem com corpo – estrutura física, as salas os corredores  –  e alma  –  com conceitos rígidos e mistérios. O taxi vem a ser a segunda pele da mãe, o posto de gasolina, uma arena onde de tudo acontece, a Kombi que vende comida, tem jogo do bicho e expõe fotografias, a segunda Kombi  –  sonho de consumo  – e até máquina fotográfica do filho têm tanta importância quanto as pessoas. Todos esses elementos, mais a fluidez do texto e a dinâmica de 3 narradores ajudam a constituir o organismo independente, inteligente e autossuficiente que é o brilhante As Miniaturas.



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