04 dezembro 2013

Quer ver a menina?

Ela é perfeita.

- Quero dormir, tire ela daqui! Não quero ver ninguém... - respondeu a mãe com voz pastosa por causa do clorofórmio.

Nasceu na segunda-feira às 7:30 da manhã pesando pouco mais de um quilo e meio. Custou a chorar. 

Quando a enfermeira trouxe a criança no quarto, toda enrolada em flanelas, só se via um tufo de cabelo preto. O pai a recebeu de braços abertos, cantarolou e dançou com a menina no colo. Depois, colocou-a na cama e a despiu. Encantado com aquela criaturinha arroxeada, examinou os dedinhos de pé, da mão e a vestiu novamente com habilidade. Sacudiu a mãe para que visse a criança.

Foram para a maternidade no domingo à tarde. A mãe, nervosa, sentia-se gorda de tanta cerveja preta e canjica; andava mal por causa da barriga e odiava arrastar os chinelos sem salto. Que pelo menos fosse um menino, para compensar tanto desconforto e os quinze anos sem filhos. O pai estava eufórico, depois de 40 anos bem vividos. Com cuidado, a acomodou no carro e a levou para a maternidade do Instituto dos Bancários.

Muito reservada, a mãe estava contrariada em se expor para as enfermeiras nos preparativos do parto. A bolsa rompeu, ela fez força e o bebê entrou e virou. O médico, que auscultava os batimentos dela e da criança, percebeu que havia risco para ambas. Decidiu tirar o bebê a fórceps altos.

Achando que o parto já fosse martírio suficiente, a mãe não fazia ideia do que seria amamentar: o peito sangrava e vertia leite a menina berrava, a boca era pequena e a fome desesperadora. A solução foi buscar leite de ama. Durante um ano o casal cumpriu esse ritual indo, todos os dias, buscar as garrafinhas de leite.

Do hall da maternidade, o pai deu vários telefonemas. Depois foi registrara filha no cartório e aos jornais colocar um anúncio no setor de nascimentos. A irmã da mãe veio ajudar e disfarçou a decepção; como os outros parentes, esperava um menino grande, forte, loiro e de olhos azuis. Tentou animar a irmã dizendo que o dia estava lindo, que a criança era saudável, melhor que fosse mulher, pois seria companheira. No dia de ir para casa a mãe estava pálida, com medo de enfrentar a responsabilidade. Além do marido e dos pais doentes, agora tinha um bebê prematuro para cuidar.

Inexperiente, tentava parecer forte e segura. Quando cometia um erro, fumava um cigarro atrás do outro, não dormia de remorso. Um dia, um acidente: ao sair da Santa Casa e entrar no carro derrubou a cesta com as mamadeiras. Tremia ao ver o leite da pobre ama escorrendo na calçada. As orelhas de abano da menina a incomodavam. Achou que colocando esparadrapo poderia resolver; depois de uns dias, na hora de tirar, a pele veio junto, mas as orelhas ficaram no lugar. As calças plásticas, novidade pós-guerra, cozinhavam a pele fina; tudo difícil, a menina não queria comer, quando comia, engasgava. Era um ser delicado, mas vingou.

A preocupação maior era tornar aquele ser mínimo, que dependia totalmente dela, uma pessoa educada, independente e responsável. A vida era muito dura, mas sua filha seria forte, mais forte do que ela se esforçava ser.

A menina andou cedo, falou cedo e logo tirou as fraldas. Alegrava a casa, entendia tudo que sua avó lhe falava em italiano, desafiava as ordens da mãe e esperava o pai no fim do dia. Era uma menininha pequena no meio de adultos e com dois anos foi para o que seria hoje uma escolinha maternal, conviver com outras crianças e sair do ambiente pesado de casa.


O pai sentiu a responsabilidade, não queria que sua menina crescesse vendo os agiotas na porta a cobrar dívidas de jogo. Dedicou-se ao seu trabalho no banco, deixou de jogar e abriu uma camisaria como segunda fonte de renda. A mãe o apoiava em tudo, eram parceiros, amantes e ...pais. Bons pais.

Nenhum comentário: