28 agosto 2011

Roteiro

          Atravesso a avenida Brigadeiro Luiz Antonio domingo cedo. Ninguém, nenhum carro, nenhum cachorro latindo, ambulância uivando ou fila de ônibus agonizando. Coloco o pé na calçada, depois na rua, tento calcular as camadas de asfalto que estão por cima dos paralelepípedos, os mesmos que viravam barras de sabão e lambiam os pneus dos carros subindo a ladeira em dias de garoa. Sim, São Paulo era conhecida por sua garoa fina e gelada. Pude sentí-la.
Todos os dias, exatamente ao meio-dia, meu pai subia a avenida no seu Aero Willis prata, carro brasileiro com motorzão de jipe e lataria pesada, tentando ser “de luxo”. Ele dirigia até a rua Boa Vista 176, entrada lateral do Banco do Estado de São Paulo, onde foi funcionário por 38 anos. Daí, minha mãe assumia a direção e me deixava na praça da República, no Instituto  de Educação no Caetano de Campos. Dos 5 aos 17 anos, aquele prédio neoclássico projetado por Ramos de Azevedo, foi minha segunda casa e era considerado um centro de excelência educacional. A praça era arborizada, havia lagos com patinhos e peixes, e até um bicho preguiça. Do outro lado, uma Kopenhagen. Eu fugia da escola para comer nha benta e batatinhas de marzipan.
Nas férias, eu e minha mãe (de luvas brancas de crochê e salto alto) íamos fazer compras na cidade e tomar chá no Mappin, em frente ao Teatro Municipal. Depois, atravessávamos o Viaduto do Chá para comprar sapatos na rua Quintino Bocaiúva e, na volta,  tomávamos o ôninus Paraíso no Vale do Anhangabaú. Vínhamos sentadas.
No ginásio, eu e minhas amigas íamos fazer pesquisa na Biblioteca Mario de Andrade andando pela rua São Luiz, passando por butiques, pela agência da Luftansa e admirando as entradas clássicas dos edifícios elegantes. Nos tempos da escola normal, íamos comer èclairs na doceria Dulca na rua do Arouche, e admirar as vitrines de sapatos. Imaginávamos como seria maravilhoso um dia sair para jantar com o namorado no restaurante O Gato que Ri. Cabulávamos aula para ir ao cine Metrópolis onde o porteiro fingia acreditar que nossas carteirinhas de estudante não eram falsificadas e depois comer esfiha no Almanara da rua Basílio da Gama.
Ainda na garoa, no meio da Brigadeiro, quando me dou conta estou olhando para o céu encoberto e rindo de mim mesma. Embalada pelas lembranças, decido pegar a alameda Sarutaiá e logo vejo cães, os atuais seres dominantes do bairro, eu acho, com roupas coloridas, acessórios de cabelo, capa de chuva e sapatos (quatro). Arrastam seus escravos que recolhem, em saquinhos plásticos, suas fezes ainda quentes.
Cruzo a alameda Campinas, a rua Pamplona e atravesso a Nove de Julho. Lembro do túnel antes da construção do MASP. Chego à rua Augusta, hoje feia e decadente,  caminho até onde era o cine Paulista, das matinês de domingo, do cachorro quente depois do filme, ou sorvete de creme com hot fudge nuts. Das garotas de mini-saia e dos rapazes de calça Lee. Na Oscar Freire, paro em frente à lanchonete Frevo. Depois, subo a Augusta até a Paulista, entro no Conjunto Nacional. Onde está hoje a livraria Cultura, era o espetacular Cine Astor. Lembro da minha melhor amiga, quando voltávamos para casa a pé.
Continuo andando,  sentindo o frio no rosto, só que não vou até a rua Sampaio Viana onde eu morei tantos anos, nem à praça Oswaldo Cruz, ou o que restou dela, sem o chorão, sem a Sears e com o desprestigiado índio fora de lugar. Viro à direita na Brigadeiro.
Em contagem de chronos, foi mais ou menos uma hora e meia. Em contagem de kairós... bem kairós é o tempo oportuno, que não se sente passar. Foram décadas, uma vida inteira, ou apenas alguns segundos.

4 comentários:

concha celestino disse...

Lindo, lindo, San! Lembrei-me de meus passeios com minha mãe pelas ruas do centro. Lindo passeio, o seu, pela memória.
Beijão,
Concha]

Tânia Tiburzio (TT) disse...

Lindo e emocionante! Posso colocar na Mundo Mundano? Beijos.

Carol Gregori | São Caetano disse...

delícia esse texto! consigo imaginar uma cidade assim, porque a gente sempre acha que era melhor naquele tempo? intrigante!bjs

Sandra Schamas disse...

meninas...adoro quando vcs comentam, dá um gás para escrever mais...beijos a todas!!! san