07 junho 2009

A Morte de Rilda

Rilda estava bela no seu leito de morte. Finalmente seu rosto de porcelana transmitia paz. Talvez por não querer passar pela velhice, desistira da vida enquanto ainda era bonita, jovial e atraente. Depois de ver tanto sofrimento, Alexandra, a única filha, não sabia se o que sentia naquele momento era alívio ou dor. Jamais presenciara o instante da morte e, ao ver o último suspiro, entorpeceu-se. Lembrou-se do desejo da mãe que pedia que a envolvessem em um lençol de linho e fechassem o caixão; pensou em fazer aquele último desejo, mas logo descartou a possibilidade. Algumas horas antes, concordara com o médico que a única coisa a fazer era deixar que sua mãe dormisse para sempre. Chorou muito por autocomplacência, por pensar que iria perder uma parte de si. As duas haviam se despedido em um átimo de profundo amor dizendo apenas “eu te amo”.

Com trinta e poucos anos, Alexandra sentiu-se só. Nunca mais diria “mãe”. O comportamento de filha malcriada e birrenta também seria enterrado e ela assumiria a linha de frente. Viu-se caminhando no corredor do hospital, sem ninguém por perto, sentiu-se forte e mulher.

O dia amanheceu rapidamente, cinzento, triste, com uma chuva torrencial. As pessoas foram chegando, sinceras em seu pesar, agrupando-se por afinidades: parentes queridos, amigos do clube, o grupo das aulas de tango, os amigos de Alexandra e seu marido. Tanta gente amava aquela mulher alegre, dinâmica, sempre disposta e interessada. Muitos choraram sua morte. “Uma pena” - diziam. O câncer havia chegado sem avisar e, quando Rilda sentiu os primeiros sintomas, as metástases já haviam se espalhado por todo seu belo corpo. Enjôos, dores no estômago, uma cirurgia inútil, dois dias de UTI e não conseguira mais ficar de pé sozinha. Quando não pode sequer erguer a xícara de café com leite, entregou-se.

No cemitério, a chuva lavava com vontade as lápides, as capelas, os mausoléus e os mármores e bronzes. Os guarda-chuvas escuros perambulavam nas alamedas estreitas, as mesmas que Rilda percorrera tantas vezes para levar flores a seus mortos.

Ir ao cemitério era um ritual cumprido pelas três irmãs: Rilda, Vicenza e Íris. Sempre levavam Alexandra, pequena, para que se acostumasse e não tivesse medo; sua tarefa era repor as flores frescas no vaso. Lavavam a capela, trocavam as toalhinhas bordadas, rezavam, faziam o sinal da cruz e iam embora conversando em italiano. Alexandra, saltitante, contava anjinhos de pedra e fazia perguntas. Rilda dizia que depois que as três morressem ninguém mais iria cuidar da capela. Naquele tempo, o cemitério andava muito descuidado pela administração, era perigoso andar por lá. Todas ficaram horrorizadas quando souberam que violavam túmulos para procurar dentes de ouro nas ossadas e só acreditaram porque o fato ocorreu com os restos mortais de uma tia distante, pobre coitada. A menina ficou impressionada, tinha pesadelos no meio da noite e acordava gritando de medo.

Como era costume na família, só os homens foram ao enterro. Uma procissão de guarda-chuvas pretos, o genro, os sobrinhos e o neto segurando o caixão, a tristeza.

Alexandra chorou muito. Quando foi marcar a missa de sétimo dia na igreja em que a mãe freqüentava, acertou os detalhes, escolheu as músicas e descobriu que a missa individual custava praticamente o dobro da missa comunitária. Porém, a secretária na sacristia garantiu que para a alma da pessoa falecida o benefício era o mesmo. Se o benefício era o mesmo porque ter dois preços de missa? Enfim, fez o que sua mãe faria: optou pela missa individual, preencheu um cheque, incluindo os honorários do organista, e saiu. No dia marcado, a igreja estava repleta de pessoas profundamente consternadas. No silêncio entre uma música e outra, a dor da perda pesava no ar.

Um comentário:

Blog da Bruna disse...

dá para ver os homens no enterro, as mulheres na missa.
Sandra, parecem reminiscências direta e não lembranças "ouvidas" em família.
Aplausos. Bruna