Todos
os dias, lá vinha ela, logo cedo antes de ir para a faculdade, depois voltava no
meio da manhã na hora do intervalo, e mais uma vez antes de ir para casa. Parecia
uma anoréxica, um fantasma. Zé até
gostava dela, achava estranho porque pedia café duplo, forte, sem açúcar. Sempre
segurando livros, colocando o cabelo para atrás da orelha e ajeitando os óculos,
fungava. Não gostava de conversar, suas mãos tremiam ao segurar a xícara, se
batesse um vento forte ela saía voando. Um dia, assim
sem mais nem menos, comentou que a família não gostava dela, que eram uns
idiotas e que se pudesse os mataria, um por um, lentamente. Mas que, pensando
bem, não seria capaz de crimes perfeitos, daria muito trabalho se livrar dos
corpos. Pensou em suicídio, causaria mais impacto e eles se sentiriam
culpados.
Contam
que certa noite perambulava pela casa,
feito assombração, pálida,
descabelada, de camisolão de cambraia e pés no chão. Pupilas
dilatadas, coração disparado por overdose de cafeína, não encontrava o sono, a agonia lhe corroía o peito.
Desceu
as escadas no escuro
sentindo a madeira velha
dos degraus rangerem a seus pés. Parou
no meio da sala
e ficou olhando a luz da rua a entrar pelo
janelão envidraçado e fazer listas
no tapete. A noite tornava tudo mais belo, gostava do silêncio, daquele cheiro de dama
da noite que
vinha do jardim.
Ficou ali, pensando. Olhou suas
mãos, tocou seu
rosto, cruzou os braços
em torno
de si mesma
num abraço solitário, começou a chorar em silêncio para não acordar o resto da família.
Família? Não.Estranhos
sob o mesmo
teto, uma gente
esquisita que
não fazia a menor ideia de quem ela era.
Neuróticos, não perdiam a oportunidade de
humilhá-la!
Malditos! Um dia ainda iria
se vingar! Poria fogo
na casa, envenenaria a comida, cuspiria no doce
de abóbora. Mais uns dias e teria o prazer de riscar
de ponta a ponta
o carro novo
do pai, picar a jaqueta
de couro da mãe. Não. Picar não,
não seria preciso:
cortaria um pedacinho bem
no meio das costas, derrubaria um vidro
inteiro de esmalte importado na manga, ou quebraria o salto do Christian
Louboutin legítimo. Poria um anúncio de garota
de programa no jornal,
com o celular
e o e-mail da sua
irmã. Publicaria na Internet aquela foto de seu irmão pelado que ela um dia
descobriu no meio dos livros, enquanto
fuçava seu quarto
às escondidas.
Sentia-se
poderosa enquanto sonhava com sua doce vingança. Foi até a cozinha e voltou com uma vela
acesa, um bloco e uma caneta bic. Sentou-se na beirada da cadeira da sala de
jantar e começou a escrever. A vela foi se consumindo, a chama aumentando e
ela, lá... absorta, escrevendo... Gritou quando sentiu algo
macio passando sobre
seus pés
e subindo pelas suas pernas brancas que nunca tinham sido depiladas.
- Um
rato! Um rato! Um rato! - gritava correndo em círculos enquanto
os malditos desciam a escada correndo para ver o que estava
acontecendo.
O irmão
conseguiu agarrar o hamster que havia fugido da gaiola, a irmã reclamou
bastante e subiu a escada, os pais ficaram em choque, aparvalhados. Nem foram
atrás da menina quando ela saiu correndo pela rua.
Um dia, um casal passou em frente ao café. O homem perguntou pela frequentadora assídua enquanto a mulher torcia um lenço que tinha nas mãos. Zé teve de
dizer que ela nunca mais voltou.