29 novembro 2015

Nuvem de fumaça

      Zé chegou para trabalhar desanimado. Fumou um cigarro na esquina, voltou para o café e começou a limpar as mesas sem vontade de nada.
Ainda não era hora de movimento, havia uma pessoa aqui outra ali e bem na última mesa, no meio de uma nuvem de fumaça, uma loira aguada e com olhar de peixe morto fumava... Pensativa. O cabelo amassado estava preso por uma faixa de cetim totalmente inapropriada, a maquiagem meio borrada e vencida, reluzia colorida demais para a luz da manhã. Para se animar, Zé deu uma conferida e achou a mulher sem graça, peituda, mas sem graça. Continuou colocando os guardanapos, o açúcar e o adoçante, foi ajeitando aqui e ali. De vez em quando, dava uma olhadinha de esguelha para a loira. Será que ela estava esperando alguém?
O café foi enchendo, as pessoas começam a fazer pedidos, a falar mais alto e o movimento da clientela animou nosso amigo, que entre um pedido e outro bebeu um gole conhaque direto da garrafa que mantinha bem escondida. Limpou a boca na manga da camisa e continuou de olho na loira sozinha, fumando. pelas tantas, entra um sujeito falando ao celular, vai direto para o fundo do café, puxa a cadeira com pressa e se senta em frente à loira que esmaga o cigarro e faz cara de nojo.

Zé, que havia visto tudo, procurou rodear a mesa para ver se ouvia alguma coisa, mas não conseguiu. O homem falou, falou e falou sem parar. A loira sorriu e soltou uma gargalhada. O homem levantou-se irritado, jogou sobre a mesa cinco notas de R$100,00 e saiu do mesmo jeito que entrou. A loira pediu a conta e quando Zé foi levar, ela, que estava de , arremessou os peitões contra o peito de Zé, deu-lhe um beijo cinematográfico e saiu.
Nunca mais apareceu no café.

22 novembro 2015

Aqui jazz


Fim de tarde. Zé gostava do frio, gostava de pensar que estava em algum país da Europa, que seu café era em Paris, tinha até colocado um poster da torre Eifell, meio rasgado nas beiradas, na parede ao lado do balcão. Sentia-se bem nos seus devaneios enquanto limpava as mesas.
Uma mulher madura se aproxima, sorri sincera e pede um café. Logo depois, quem ela estava esperando chega andando apressado e senta-se ao seu lado. Dava para notar que era bem mais jovem que ela. Terno sóbrio, gravata discreta, sapato de cromo alemão. Também pede um café. Curto, por favor.

- Você não mudou... -  diz ele.
- Dez anos? Ou mais? - diz ela, sem sequer ousar olhar nos olhos dele com medo de morrer envenenada.

Um abraço cerimonioso, quase infantil, mãos frias e suadas, coração marcando um compasso. Começam a atropelar os assuntos como se a última conversa tivesse sido ontem e as horas vão passando. Tudo passa. As afinidades ficam. Havia um querer bem. As memórias, fotografadas de ângulos diferentes, desfilavam entre eles como tiras de celuloide de um antigo roteiro.

Algumas horas antes…

Ela está pronta para sair e, como sempre, anda pela casa feito barata tonta, certificando-se de que não esqueceu de nada. Revira a bolsa, pega a chave de casa com uma mão e, com a outra, liga o celular. Mais uma olhadinha no espelho do lavabo e abre a porta para chamar o elevador. O telefone toca e uma voz familiar pergunta quem fala. Ela responde hesitante e ele se identifica. Silêncio.

Ela entra, deixa cair o corpo na poltrona, larga a bolsa no chão e continua a conversa com voz contida, disfarçando a emoção. O estômago arde, aperta e regurgita uma mágoa há muito ruminada. Dez anos e a certeza de que um dia isso iria acontecer.  Marcam um encontro para o final da tarde, será que foi uma boa ideia? Estava atrasada, pensaria a respeito a caminho do escritório.

Passa o dia sem nem um pingo de concentração fala ao telefone, responde e-mails, participa de uma longa reunião, olha no relógio, não quer almoçar. Toma água, desce até a calçada para fumar um cigarro, finge que trabalha mais um pouco e vai ao encontro de um fantasma, de alguém que ela duvidou que um dia tivesse existido. Aqui jazz um amor de adolescente.


Não sente o chão sob seus pés. Será que eu estou bem?

17 novembro 2015

Frequentadora assídua

Todos os dias, lá vinha ela, logo cedo antes de ir para a faculdade, depois voltava no meio da manhã na hora do intervalo, e mais uma vez antes de ir para casa. Parecia uma anoréxica, um fantasma. Zé até gostava dela, achava estranho porque pedia café duplo, forte, sem açúcar. Sempre segurando livros, colocando o cabelo para atrás da orelha e ajeitando os óculos, fungava. Não gostava de conversar, suas mãos tremiam ao segurar a xícara, se batesse um vento forte ela saía voando. Um dia, assim sem mais nem menos, comentou que a família não gostava dela, que eram uns idiotas e que se pudesse os mataria, um por um, lentamente. Mas que, pensando bem, não seria capaz de crimes perfeitos, daria muito trabalho se livrar dos corpos. Pensou em suicídio,  causaria mais impacto e eles se sentiriam culpados.

Contam que certa noite perambulava pela casa, feito assombração, pálida, descabelada, de camisolão de cambraia e pés no chão. Pupilas dilatadas, coração disparado por overdose de cafeína, não encontrava o sono, a agonia lhe corroía o peito.
Desceu as escadas no escuro sentindo a madeira velha dos degraus rangerem a seus pés. Parou no meio da sala e ficou olhando a luz da rua a entrar pelo janelão envidraçado e fazer listas no tapete. A noite tornava tudo mais belo, gostava do silêncio, daquele cheiro de dama da noite que vinha do jardim. Ficou ali, pensando. Olhou suas mãos, tocou seu rosto, cruzou os braços em torno de si mesma num abraço solitário, começou a chorar em silêncio para não acordar o resto da família. Família? Não.Estranhos sob o mesmo teto, uma gente esquisita que não fazia a menor ideia de quem ela era. Neuróticos, não perdiam a oportunidade de humilhá-la!
Malditos! Um dia ainda iria se vingar! Poria fogo na casa, envenenaria a comida, cuspiria no doce de abóbora. Mais uns dias e teria o prazer de riscar de ponta a ponta o carro novo do pai, picar a jaqueta de couro da mãe. Não. Picar não, não seria preciso: cortaria um pedacinho bem no meio das costas, derrubaria um vidro inteiro de esmalte importado na manga, ou quebraria o salto do Christian Louboutin legítimo. Poria um anúncio de garota de programa no jornal, com o celular e o e-mail da sua irmã. Publicaria na Internet aquela foto de seu irmão pelado que ela um dia descobriu no meio dos livros, enquanto fuçava seu quarto às escondidas.
Sentia-se poderosa enquanto sonhava com sua doce vingança. Foi até a cozinha e voltou com uma vela acesa, um bloco e uma caneta bic. Sentou-se na beirada da cadeira da sala de jantar e começou a escrever. A vela foi se consumindo, a chama aumentando e ela, lá... absorta, escrevendo... Gritou quando sentiu algo macio passando sobre seus pés e subindo pelas suas pernas brancas que nunca tinham sido depiladas.
- Um rato! Um rato! Um rato! - gritava correndo em círculos enquanto os malditos desciam a escada correndo para ver o que estava acontecendo.
O irmão conseguiu agarrar o hamster que havia fugido da gaiola, a irmã reclamou bastante e subiu a escada, os pais ficaram em choque, aparvalhados. Nem foram atrás da menina quando ela saiu correndo pela rua.  

Um dia, um casal passou em frente ao café. O homem perguntou pela frequentadora assídua enquanto a mulher torcia um lenço que tinha nas mãos.  Zé teve de dizer que ela nunca mais voltou.


10 novembro 2015

O gringo


Sexta-feira, fim de tarde, todo mundo em clima de fim de ano, comemorando a chegada do décimo terceiro. Várias mesas do café estavam ocupadas com o pessoal que trabalha na região e que nessa época do ano finge se divertir com o sorteio do amigo secreto. ninguém aguenta mais. Aêêê... Meu amigo não é amigo.... é aaamiiigaaa!

Apenas uma mesa estava ocupada por uma pessoa só. Era um cara grisalho e de barba que tomava cerveja observando. Zé achou que ele era gringo, que tinha cara de sangue bom, aproximou-se e puxou conversa.

- How are you? – disse Zé todo orgulhoso.
- Tudo bem, obrigado – respondeu o homem quase sem sotaque.

Era gringo mesmo, da Pensilvânia, antropólogo. Apesar do sorriso amigável, estava com os olhos cheios de lágrimas e foi logo dizendo, na lata, que estava muito triste. Zé, solidário, perguntou por que e ouviu atento a história, se esquecendo um pouco dos outros fregueses.

O antropólogo havia morado na Bahia anteriormente, casou-se com uma baiana e depois que seu filho nasceu voltou com a família aos Estados Unidos. Custaram a se ambientar, começaram as brigas, a separação aconteceu, o tempo passou. Mais tarde, resolveu morar num veleiro, coisa de gringo, e se aventurar. Adorava saber que poderia navegar para onde quisesse em sua casa flutuante e começou pelo Golfo do México, depois pelas águas do Caribe. A viagem dos sonhos durou 45 dias desde a Flórida até Paraty.

Deu tudo certo, ele foi ficando por lá. Estava feliz, no paraíso. O melhor, dizia ele, era acordar a cada dia com um cenário diferente, proporcionado pelo movimento da maresia. Às vezes, abria os olhos e via as montanhas, outras, o contorno da cidade histórica e assim passavam os dias de sossego. À noite, tocava blues num barzinho e depois dormia olhando a lua. Quer vida melhor? Just perfect.

      Por aqueles dias, uma tempestade tropical e a fatalidade: um raio atingiu o mastro de metal no meio da noite, destruiu o barco. Tudo estava perdido. Presente, passado, futuro, sua casa e seus pertences desapareceram depois de um trovão! Ele perdera tudo o que tinha nessa vida, estava apenas com a roupa do corpo, sandália havaiana e um celular pré-pago. Sem casa, sem esperança, sem saber para onde ir. Em Sampa, na casa de velhos amigos, tentava se recuperar.

Zé, ficou chateado, se emocionou, até. Colocou a mão no ombro do novo amigo e depois saiu.  Voltou com mais uma cerveja, uma porção de pão de queijo e disse: Fique aqui o tempo que quiser. Hoje é tudo por conta da casa!



09 novembro 2015

As duas

Depois do movimento grande na hora do almoço, o café geralmente ficava vazio, principalmente na segunda-feira. Zé, entediado, tomava seu primeiro café do dia. Uma bela executiva de seus trinta e poucos anos chamou sua atenção quando virou a esquina e caminhou decidida em direção às mesinhas de ferro. Ela era um monumento, cara de ricona. Poderosa, pensou ele, sem tirar os olhos do rosto angelical e dos cabelos longos e bem cuidados, com reflexos dourados. Achou que ela era turbinada. E daí? Era gostosa pra caramba.

A moça tirou um lenço de papel da bolsa, passou no assento de uma das cadeiras, colocou seus pertences na outra, olhou o relógio, chamou o Zé e pediu com voz de veludo:

- Um gim tônica, por favor.
- Sinto muito. Não temos gim tônica -  se desculpou o bom homem - Pode            ser uma cerveja bem gelada?
- Então me traz uma água e um café, pode ser?

Enquanto preparava o pedido, Zé notou que outra mulher acabara de entrar e de se dirigir rapidamente à mesa da primeira. Bonitona, porém, era outro tipo: magra, alta, cabelos bem cortados e de um tom avermelhado. Vestia um jeans justo, camisa branca e carregava uma mochila que, pelo tamanho e formato, deveria conter um notebook e tudo mais que uma pessoa possa precisar numa ilha deserta. Quando Zé trouxe o café para a gostosa, a recém-chegada pediu uma cerveja e um pacote de salgadinho. O café vazio e as bonitonas , provocando a imaginação do nosso amigo que não perdia um movimento. Tentou disfarçar o olhar insistente, mas elas não estavam nem aí com ele.

A executiva olhava nos olhos da outra, que correspondia. Bebericou a água e passou a língua nos lábios, num gesto sensual. Aproximou-se, segurou primeiro uma das mãos da altona e depois a outra, sem desviar o olhar. Para tortura de Zé, falavam baixinho, trocavam confidências e carinhos discretos. Ficaram ali um tempo, pagaram a conta, pediram um taxi e saíram de mãos dadas. Deixaram uma gorda gorjeta.

- Se elas topassem...- resmungou Zé suspirando.

E foi logo atender uma turma que acabava de ocupar a mesa maior.



07 novembro 2015

Llíngua de prego

Agora você está entrando no Café do Zé.
Fique à vontade, puxe uma cadeira.
Boas histórias ordinárias o aguardam.

- Eu quero um café, expresso, meio carioca. Meio carioca é assim: com um pouquinho só de água quente. Dá para colocar espuma de leite? O leite é integral? Ah, então deixa. Pode ser sem espuma. Tem açúcar mascavo? Ótimo! Por favor, quero o café servido em xícara seca, se você não se importa. Detesto xícara molhada, muda o gosto do café, sabe? Você pode levar até a mesa? Estou esperando uma pessoa. Dá para limpar essa mesa aqui? Está suja. Obrigado.

O homem elegante e impecavelmente vestido puxa a cadeira, senta-se e abre o jornal com cuidado. Mal começa a ler e olha para cima, depois para os lados. Quando Zé vem com o café, ele pede para mudar de mesa porque ali onde estava havia uma corrente de vento. Muda-se para um lugar mais reservado perto do balcão e diz que a música estava atrapalhando sua leitura. Zé, tentando ser gentil, diz que vai tomar providências e resmunga qualquer coisa ao entrar para a cozinha.

O executivo toma seu café devagar. Pede uma água mineral, garrafa pequena, sem gás, com uma pedra de gelo, suco de limão à parte e um copo seco, por favor. Detesta copo molhado. Reclama que agora a música estava praticamente inaudível. Sim, dava para aumentar o som, resmunga Zé.

Quinze minutos depois, entra uma moça de cabelos roxos espetados, unhas azuis, umas vinte argolas de metal em cada orelha e várias roupas pretas sobrepostas. Vai direto à mesa do homem bem vestido e o beija. Na boca. Demoradamente. Senta-se ao lado dele e sorri com cara de alcova. Ele disfarça. Ela contorna todas as reentrâncias da orelha esquerda dele com a língua de prego. Depois, segura seu rosto com as duas mãos e repete o gesto na orelha direita. Ele abre os olhos e sorri totalmente enfeitiçado pelos olhos verdes da exótica...


- Mais um café, expresso, meio carioca.



Conhece o Café do Zé?

É um café bem chinfrim. Tem, no máximo, 12 metros quadrados. Uma boa máquina italiana, uma estufa com salgados, um forninho para pão de queijo e misto quente, uma velha geladeirinha Cônsul (caso algum frequentador assíduo pedisse uma cerveja), três ou quatro mesinhas de ferro, uma prateleira com uma coleção de xícaras empoeiradas, as favoritas do dono. Zé é um cara simpático, observador, conversa sempre na medida certa. O pedacinho de chão, que ocupa parte do passeio público, é uma extensão dele próprio. Solteiro, vive em uma casa de cômodos não muito longe dali. Sobre seu passado, quase nada se sabe. Parece que era neto de escrava. Sua mãe nascera em uma grande fazenda de café e fora adotada pela família de fazendeiros. Morreu cedo, a coitada. Zé trabalhou com a família até a maioridade, depois teve de se sustentar e nem se lembra do tempo em que não trabalhou. Chegou até a receber uma herança de seu pai, filho do dono da fazenda, e o que sobrou dela foi um sobradinho. Ele aluga a parte de cima e guarda o dinheiro do aluguel. Onde é a garagem, funciona seu café. Mora num quarto de pensão, acha mais fácil. 
 Criado no meio dos cafezais, conhece tudo sobre o fruto. Sabe plantar, colher, secar, torrar e moer os grãos. É capaz de fazer a alquimia perfeita que só os que conseguem ver a nobreza de sua alma têm o privilégio de degustar.
Digamos que Zé é básico, sem grandes ambições, nem preocupações, sem filhos para criar, nem mulher para sustentar. Talvez, justamente por isso, transmita uma paz invejada. Quem vai lá tenta absorver a atmosfera do local.