24 outubro 2012

Textos inspirados em outros textos - 5 - Kafka

Acendeu um cigarro, bebericou um 12 anos black label on the rocks, aspirou uma carreira inteira de uma vez. Soltou um gemido de prazer. Mais um gole, mais uma tragada no cigarro, fumaça desenhando formas no ar. Fazia tempo. Nunca se considerou viciado em nada, mas era. Gostava, afinal a vida já era uma merda frita e, sem anestesia, se tornava insuportável. Relaxou. Pensou na viagem para Minas, nos móveis rústicos que viu, nos tótens que quase comprou. Achou bacana ter um troféu daqueles no meio da sala, para mudar um pouco, sei lá. Depois ficou com medo. Imaginou se acordasse no meio da noite para ir no banheiro e desse de cara com aquelas carrancas. Viu a sala cheia de figuras escuras, fantasmas sombrios e ameaçadores. Bad trip. Droga. Ainda achou que ficaria numa boa. Sentiu coceira no dedo indicador da mão direita, coçou, até se ferir. Ficou um buraquinho rosado, como uma picada de borrachudo. Olhou de perto. Uma coisa gelatinosa e nojenta começou a sair. Uma lesma acinzentada foi se transformando numa cobrinha esperta que logo se enroscou na sua mão. Ia dando voltas, subindo pelo braço, pescoço. Outro gole. Agora sim... Acordou nú, com um homem deitado aos seu lado. Também nú.

textos inspirados em outros textos - 4 - Arturo Bandini



Pergunte ao pó na estrada! Pergunte às árvores solitárias onde o Mojave começa. Pergunte a elas sobre Camilla Lopez, e elas sussurrarão seu nome. 


 Jonh Fante



 Está frio. A chuva não consegue molhar e logo escurece. Não quero ir para casa, abrir a porta, acender a luz e ver que você não veio. Nem virá. Penso - é melhor assim -  mas é mentira. Pensava que a solidão  era horrível - também é mentira - . Ela me faz bem. Um fim de tarde cinzento, uma cidade de cimento, uma rotina sem sentido. Que tédio. Na folha em branco enfiada no rolo da velha máquina de escrever algumas palavras apenas.



21 outubro 2012

Textos inspirados em outros textos - 3 - Adriana Falcão


Ali, deitada, divagou:
se fosse eu,
Teria escolhido lírios.
 Morrera de repente. Fora um ataque fulminante do coração, diziam os parentes chocados. Não choravam nem rezavam, apenas velavam o corpo da defunta, em total silêncio.No caixão enfeitado com rosas cor de rosa, cabelos cacheados e abundantes emolduravam o rosto. A pele transparente na testa, mal cobria as veias. Os lábios ressecados e entreabertos davam a impressão de que a bela mulher sorria, como se não soubesse que tinha morrido. As mãos sobre o peito seguravam um terço.
 No meio da manhã, chegou o marido segurando a filhinha de cinco anos pelas mãos
– Pobrezinha! Não deviam ter trazido... Pode ficar traumatizada.
– Elas sempre ficam traumatizadas. Eu também fiquei, e já era moça feita! – disse a tia avó, lembrando-se de sua mãe falecida havia mais de quarenta anos.
– Ela quis vir – disse o pai – queria entender o que acontece quando as pessoas morrem. Eu achei melhor ver a mãe e se despedir.
Segurando a menina no colo, o pai tentava explicar o inexplicável – vida e morte. Difícil para ele, mas ela entendeu. Olhava para a mãe com os olhos bem arregalados, se atinha aos detalhes, olhava para as pessoas. Pediu para descer. O pai a colocou no chão e ela saiu correndo em direção ao corredor, entrando, a seguir, na sala ao lado, onde havia outro velório. Ficou parada na entrada, observando e logo voltou para perto do pai.
A hora do enterro se aproximava, as pessoas iam chegando sem saber o que dizer. Abraçavam o pai, faziam um carinho na menina agarrada às pernas dele, chegavam perto do caixão e faziam o sinal da cruz.
Lá fora, um movimento: o carro funerário havia chegado e dois funcionários de roupa caqui entraram com um papel na mão. Pegaram a tampa, que estava encostada na parede, e cobriram o caixão.
–Vão levar a mamãe? Eu nunca mais vou ver ela? Quero ver de novo, quero dar tchau para a mamãe, posso? Me segura no colo papai, quero ver.
O pai a ergueu e a abraçou com força. A menina jogou um beijo e deu adeus com a mãozinha. Enquanto atarraxavam os parafusos ela disse:
– A mamãe me disse que gostava de lírios.

20 outubro 2012

Textos inspirados em outros textos - 2 - Tolstoy


Todas as famílias felizes são iguais. As infelizes, cada uma o é à sua maneira.- Tolstoi

O pai entrou, jogou a mochila no canto e foi direto tomar uma chuveirada. Ela, que brincava no tapete da sala em frente à televisão, só teve tempo de dizer um oi. Entretida com as panelinhas, nem percebeu que a mãe passou com uma pilha de roupas dobradas. Quando a tevê anunciou a novela das sete, a mãe gritou da cozinha que a comida estava na mesa. Jantaram em silêncio, como de hábito, depois, só o barulho da louça sendo lavada, o revirar das folhas do jornal, os atores murmurando clichês.
No meio da noite a menina tem um acesso de tosse. Ambos correm acudir a filha e notam respingos de sangue no lençol. Embrulham-na em um cobertor e vão direto ao pronto socorro. Na sala de espera, com a criança pálida no colo, ele passa o braço em volta dos ombros da mulher e a beija com carinho. Ela corresponde pondo sua mão sobre a dele, sente um arrepio. Há quanto tempo não se tocavam. Olham-se com carinho. A menina tosse, tosse, uma golfada de sangue tinge a camiseta dele. Pedem ajuda, o médico já vai atender. Um de cada lado da cama, velam a doentinha  desfigurada. Ela será encaminhada para a  UTI, acompanhantes não são permitidos. Levam-na.
Desolados, os pais voltam para casa. Choram, se abraçam e fazem amor como há muito não faziam.

19 outubro 2012

Textos inspirados em outros textos - 1 - Che Guevara


Hay que endurecerse sin perder la ternura jamás. 


“ Você está bem? Está me ouvindo? Eu quero que você saiba que estou aqui, meu bem. As visitas são curtas e só pode entrar uma pessoa de cada vez. As crianças ficaram lá fora. Dei graças a deus. Queria estar sozinha com você, só nós dois. Assim. Vou fazer massagem nos seus pés, está sentindo? Você se mexeu...Olhe para mim, fale comigo...abra os olhos... Se estiver me ouvindo, pisque. Piscou. Que bom, que você não morreu, porque eu preciso 
lhe dizer uma coisa. Piscou de novo? Ótimo! Agora, preste atenção, eu sei que o acidente foi a caminho do motel seu filho da puta. Está tendo um caso com a estagiária, a vagabunda que você teve a coragem de me apresentar. Eu me matando para ser  a esposa perfeita e você? Trepando com aquela zinha todo dia na hora do almoço. Era bom, não é? Eu sei. Mas agora, quem vai foder com sua vida agora sou eu. Mas vou foder tanto que você não vai querer sair dessa cama nunca mais. Vou estourar os cartões de crédito, zerar as contas conjuntas, vender o seu carro – está no meu nome, lembra? Vou inscrever você num site de relacionamentos gay. Vou aparecer lá no seu escritório, preciso bater um papinho com aquele seu chefe careta e contar tudo o que você me contou. Pode piscar á vontade, viu meu bem. Amanhã eu volto para ver você.”

15 outubro 2012

Fedentina

Sapato Ferragamo, terno Armani, gravata Hermès, pasta Louis Vuitton. O cafageste bem vestido entra no restaurante e se posiciona numa mesa discreta. Pede a carta de vinhos, água mineral gelada, sem gás. Pouco depois entra o outro: Rolex no pulso, Iphone na orelha, camisa Polo laranja, vai direto à mesa discreta. Tapinhas nas costas, como velhacos amigos, sorrisos amarelentos.


Fingem conversar, aprovam o vinho, brindam. O de camisa laranja pega a pasta Louis Vitton, vai ao banheiro entra no cubículo e tranca a porta. Não percebe que alguém entra no cubículo ao lado. Abaixa as calças e enche a cueca com o propinoproduto que estava na pasta. Sai confiante e vai comer patê de fois gras. Sobremesa-cafezinho, sai um de cada vez. O de terno espera seu carro blindado no valet, está atrasado para a próxima reunião no gabinete. O laranja entra num taxi, que já o esperava, segue para o aeroporto pegar o próximo voo para Brasília. O terceiro, o que entrou no banheiro junto com o laranja, confere no celular as fotos que acabou de tirar  e as envia para os “mestres da manipulação de marionetes”.

O de terno é eleito, o laranja consegue um cargo excelente e o fotógrafo continua prestando serviços sórdidos a preços módicos. O que vamos pedir hoje? Meia calabresa meia mozarela?