26 setembro 2011

Murciélagos

Gosto de ir à praia em dias cinzentos quando a monotonia dos tons me traz uma paz interior. Observo a paisagem neutra,  sinto a mente esvaziar-se, como se todos os pensamentos fossem escorrendo pelo meu corpo e penetrando na areia úmida e macia. Noto um pequeno barco surgir no meio das ondas e espero que ele se aproxime. Entro na água até onde dá pé e observo o barqueiro que rema como quem sabe o que faz. “Quer vir?”, pergunta ele. Com  dificuldade, subo no barco arfando. “Vamos do outro lado ver a gruta”, explica o moreno com pele de couro. Eu concordo balançando a cabeça e torcendo o cabelo molhado.

Mal se nota a abertura da gruta. Precisamos deitar no barco e esperar uma marola para poder entrar. Depois de algumas tentativas conseguimos. Estou com medo, mas sei que vou gostar.
A pedra grosseira por fora é branca por dentro e a parte da gruta que fica no fundo do mar é aberta permitindo que a luz entre por baixo e reflita o azul da água. Encantada, me sinto dentro de uma imensa água-marinha. Ouço o som da água pingando, olho para cima e vejo alguns morcegos enfileirados, pendurados nos estalactites. Pela primeira vez gosto daquelas criaturas que mais parecem retângulos de veludo presos pelo centro. De algum modo sei que não irão me atacar.

Desço do barco agarrando-me às pedras e peço para o barqueiro esperar. Sinto-me desprotegida , tento percorrer uma espécie de trilha com muito cuidado, estou curiosa. Além do som dos pingos pingando ouço apenas a minha respiração. Busco a escuridão total, mas ela nunca acontece, sempre há uma luz que vem das águas cristalinas como se não houvesse mais nada que pudesse me surpreender. 

O breu acontece, me assusto e paro. Alguém me pergunta quem sou eu e dois olhos imensos encontram os meus. São olhos apenas. Eu não consigo ver nem sentir nenhum corpo, apenas dois olhos, ora azuis, ora verdes, que se confundem com o azul e o verde que vem da luz do fundo do mar.
A voz me diz que são os olhos da morte. mas eu sei que são os olhos do amor. Mergulho no abraço de morte e de amor por tempo indefinido. Preciso voltar.

Agarrada às pedras, percorro a trilha de volta, entro no barco onde o moreno me espera, olho para cima e admiro  os retângulos de veludo.Murciélagos”, sussurram eles, suspendo a respiração para ouvir melhor aquela o mantra sinistro e reconfortante. 

O barqueiro rema com habilidade e logo estamos de volta à praia.


19 setembro 2011

Mulheres no ônibus

Uma beirava os setenta, bela ainda, olhos azuis, cabelo prateado. Sentada no primeiro banco, encostada à janela, tinha nas mãos um envelope gigante com logotipo de laboratório. A outra, com mais de cinquenta e também com envelope enorme, pediu licença e sentou-se ao lado da primeira.

O ônibus ia sacolejando e as duas em silêncio. Verão abafado por causa do asfalto quente, reflexos de sol batendo nos vidros dos carros. A de setenta vira para a de cinquanta e diz:
- Eu tenho um problema de saúde muito sério.
- Câncer?
- Não.
- Diabetes?- pergunta a de cinquenta que acabara de saber que tinha e estava desolada.
- Pior - responde a outra com cara de velório - e completa - minha vagina colou.
- Como?
- Minha vagina colou, assim, os dois lados estão juntos... - disse a coitada juntando as mãos.
- Grudou?
- É. Grudou. Não posso mais ter relação. Meu marido reclama. Ele ainda gosta.
- Nossa!- exclama a de cinquenta sem saber o que dizer.
- É muito raro acontecer isso, mas acontece. Problema hormonal, o médico falou que só operando, mesmo assim é complicado, vou consultar mais um. Já fui em dois e não resolveu. Agora vou num que a minha cunhada me falou, lá em Santana.
- Que coisa, sinto muito. Mas acho que o carinho, o afeto, o companheirismo também são importantes, não é? Pelo menos vocês se gostam, estão juntos há muitos anos, imagino...ficam juntos vendo tevê de mãos dadas, se abraçam...
- Pois é, mas não é bem assim, não. Está difícil porque a gente gosta de sexo mesmo. A gente ainda tem desejo, mas não pode fazer direito.
- Sinto muito...

Continuaram em silêncio compartilhando aquela intimidade inesperada às três horas da tarde. A de cinquenta ficou pensando como que uma pessoa fala uma coisa dessas para outra que nem conhece? De certo porque estava sofrendo muito, precisando compartilhar uma dor. Pensou que se acontecesse com ela, o que faria? Se a siua vagina um dia iria colar, que coisa, nunca tinha ouvido falar uma coisa dessas.

De repente, a de setenta disse:
- Ele gosta de sexo oral, mas eu não.

Constrangida a de cinquenta resolveu descer.
- Boa sorte minha senhora, meu ponto é aqui, preciso descer. Até mais ver.

14 setembro 2011

Todo Sentimento - Chico Buarque

Preciso não dormir
Até se consumar
O tempo da gente.
Preciso conduzir
Um tempo de te amar,
Te amando devagar e urgentemente.

Pretendo descobrir
No último momento

Um tempo que refaz o que desfez,
Que recolhe todo sentimento
E bota no corpo uma outra vez.
Prometo te querer
Até o amor cair
Doente, doente...
Prefiro, então, partir
A tempo de poder
A gente se desvencilhar da gente.
Depois de te perder,
Te encontro, com certeza,
Talvez num tempo da delicadeza,
Onde não diremos nada;
Nada aconteceu.
Apenas seguirei
Como encantado ao lado teu.

07 setembro 2011

Pele

Pele morena e doce
Que encosta e gruda
Como se imantada fosse
No desejo transpira
Cheiro de corpo
Calor de corpo
Enrosco, agonia
Mão na nuca
Pele fria
Mão na boca, nos seios
Um aperto, um abraço
Vem...
Me abraça de novo
Me mata de cansaço