19 outubro 2009

Carta de um Suicida

Não quero perdão, quero respeito pela minha escolha. Não se sintam culpados, foi a maneira mais justa que encontrei. Sei que terão muito trabalho para limpar tudo, mas será bem menos do que me agüentar por mais um tempo. A velhice é longa e cara.

O que me preocupa é o fato de vocês não estarem preparadas para enfrentar o falatório depois. Caso eu esteja certo, mintam. Inventem uma história comovente e acreditem nela. A gente sempre acaba acreditando nas nossas mentiras. A morte faz parte da vida, mas as pessoas insistem em não aceitar, principalmente quando o sujeito decide, ele mesmo, a hora de partir.

Não sei se esse ato extremo e trágico foi resultado de súbita coragem ou premeditada covardia. Não sei o que vem depois, não sei nada. Não sabemos nada, essa é a verdade. Não gastem muito com caixão, flores, essas coisas. Doem tudo que puder ser aproveitado do meu corpo e cremem o que sobrar. A cerimônia é bonita e vocês podem escolher algumas músicas que eu gosto.

Vocês se lembram do dia em que ganhei aquele prêmio de literatura? Eu estava feliz, elegante, realizado, vocês comigo, as pessoas me cumprimentando... Lembrem de mim assim. È tudo o que eu quero.

Carta de um Suicida

Não quero perdão, quero respeito pela minha escolha. Não se sintam culpados, foi a maneira mais justa que encontrei. Sei que terão muito trabalho para limpar tudo, mas será bem menos do que me agüentar por mais um tempo. A velhice é longa e cara.

O que me preocupa é o fato de vocês não estarem preparadas para enfrentar o falatório depois. Caso eu esteja certo, mintam. Inventem uma história comovente e acreditem nela. A gente sempre acaba acreditando nas nossas mentiras. A morte faz parte da vida, mas as pessoas insistem em não aceitar, principalmente quando o sujeito decide, ele mesmo, a hora de partir.

Não sei se esse ato extremo e trágico foi resultado de súbita coragem ou premeditada covardia. Não sei o que vem depois, não sei nada. Não sabemos nada, essa é a verdade. Não gastem muito com caixão, flores, essas coisas. Doem tudo que puder ser aproveitado do meu corpo e cremem o que sobrar. A cerimônia é bonita e vocês podem escolher algumas músicas que eu gosto.

Vocês se lembram do dia em que ganhei aquele prêmio de literatura? Eu estava feliz, elegante, realizado, vocês comigo, as pessoas me cumprimentando... Lembrem de mim assim. È tudo o que eu quero.

Sexta-feira

Anda , menina, vá se vestir que nós vamos sair. Não vá me por aqueles tênis horrorosos. Se arrume direito que nós vamos à igreja. Vamos logo depois do almoço. Comprei filé de peixe na feira porque hoje não pode comer carne. Amad! desligue o rádio, tenha um pouco de respeito. Eu sei que você quer ouvir as notícias, mas acho melhor só ler o jornal. Quando o almoço estiver pronto eu chamo. Você pode dormir de tarde, se quiser, eu vou sair com Alexandra e à noite podemos ir comer pizza, de mussarela. Calabreza não, que é carne.

Alex, não demore. Vou esquentando o carro e espero você. Vamos na Imaculada primeiro, depois na São Gabriel e , se der, vamos ver a procissão em Vila Mariana.

Vem, dá a mão para a mamãe, não tenha medo. O caixão de vidro? È Jesus morto, coitadinho. È só uma estátua, não precisa se assustar. Você faz o sinal da cruz, pede perdão pelos seus pecados e pronto. Vamos entrar na fila. Está vendo aqueles panos roxos cobrindo os santos? Então, é sinal de luto. Lembra quando o tio Sadih morreu que a tia Louris só usava preto? O preto e o roxo são cores do luto, querem dizer que você está triste porque alguém morreu.

Não, ninguém enfiou uma faca no coração de Nossa Senhora. Ela está assim para mostrar que está sofrendo muito porque Jesus morreu. Como se tivessem enfiado uma faca no coração dela. Aquele é São Sebastião, ele foi um mártir. Mártir é quem morre por defender uma causa, ele era soldado e defendia os cristãos, em vez de matá-los. È . São flechas. Sim, faziam maldades com os cristãos. Vamos, a fila está andando. Fica tudo escuro porque hoje é um dia triste, é o velório de Jesus. Velório vem de vela, por isso todo mundo acende vela.

Eu não vou morrer agora, filha, nem seu pai. Vai demorar muito ainda. Não , você não precisa ver nenhum defunto , você ainda é pequena. Depois não tem nada de mais, parece que a pessoa está dormindo.

Já está na hora da procissão passar, é bonito, as pessoas cantam, levam os símbolos da Igreja, rezam. Porque as mulheres usam véu? Por respeito: as casadas usam véu preto e as solteiras usam véu branco, como a Virgem Maria. Você é criança, usa véu branco. O que é virgem? Pára de fazer tantas perguntas, menina, depois eu explico.

Você está chorando? Não chora, a mamãe está aqui. È bonito ver a procissão, as crianças vestidas de anjos, a banda tocando. Está tremendo, está pálida... Não olha então, está acabando. Já vamos para casa.

13 outubro 2009

O Parto

- Quer ver a menina? Ela é perfeita.
- Quero dormir, tire ela daqui! Não quero ver ninguém... - respondeu Rilda com voz pastosa por causa do clorofórmio.

Alexandra nasceu na segunda-feira às 7:30 da manhã, sentada, azulada, enrolada no cordão umbilical, pesando pouco mais de um quilo e meio. Custou a chorar. Quando a enfermeira trouxe a criança no quarto, toda enrolada em flanelas, só se via um tufo de cabelo preto e encaracolado encimando o pacote cor de rosa. Amad a recebeu de braços abertos, cantarolou e dançou com a menina no colo. Depois, colocou-a na cama e a despiu. Encantado com aquela criaturinha arroxeada, examinou os dedinhos de pé, da mão e a vestiu novamente com habilidade. Sacudiu Rilda para que acordasse e visse a filha que acabara de nascer.

Foram para a maternidade no domingo à tarde. Rilda, nervosa, sentia-se gorda de tanta cerveja preta e canjica que fora forçada a tomar durante a gravidez; andava mal por causa da barriga e odiava arrastar os chinelos sem salto. Que pelo menos fosse um menino, para compensar tanto desconforto e os quinze anos sem filhos. Amad estava eufórico: iria ser pai, depois de quarenta anos bem vividos numa vida de jogador e moleque. Com cuidado, a acomodou no carro e a levou para a maternidade, onde o Instituto dos Bancários tinha convênio.

Muito reservada, Rilda estava contrariada em se expor para as enfermeiras nos preparativos do parto. A bolsa rompeu, ela fez força e o bebê, em vez de sair, entrou e virou. O médico, que auscultava os batimentos dela e da criança, percebeu que havia risco para ambas. Decidiu fazer uma episiotomia e tirar o bebê a fórceps altos.

As enfermeiras deixaram a que mãe descansasse até a hora de dar de mamar. Achando que o parto já fosse martírio suficiente, Rilda não fazia idéia do que seria amamentar: o peito sangrava e vertia leite a menina berrava, não conseguia, a boca era pequena e a fome desesperadora. A solução foi buscar leite de ama na Santa Casa. Naquele tempo havia um banco de leite e as amas ficavam numa sala onde havia uma placa “ Ordenha”. Estranho. Durante um ano Rilda cumpriu esse ritual indo, todos os dias, buscar as garrafinhas de leite.

Do hall da maternidade, Amad deu vários telefonemas para avisar às pessoas que Alexandra havia nascido. Depois foi aos jornais colocar o anúncio na sessão de nascimentos e registrar a filha no cartório. Íris veio ficar com a irmã e disfarçou a decepção; como os outros parentes, esperava um menino grande, forte, loiro e de olhos azuis. Tentou animar a irmã dizendo que o dia estava lindo, que a criança era saudável, melhor que fosse mulher, pois seria companheira. Vieram algumas visitas, mas Rilda as ignorou. No dia de ir para casa estava pálida, com medo de enfrentar as responsabilidades de esposa, de filha e, agora, de mãe.

Inexperiente, tentava parecer forte e segura. Quando cometia um erro, não dormia de remorso. Um dia, um acidente: ao sair da Santa Casa e entrar no carro derrubou a cesta com as mamadeiras. Tremia ao ver o leite da pobre ama escorrendo na calçada. Rilda se incomodava com as orelhas de abano da menina e achou que colocando esparadrapo poderia resolver o problema; depois de uns dias, na hora de tirar, a pele veio junto, mas as orelhas ficaram no lugar. As calças plásticas, novidade pós guerra, cozinhavam a pele fina; tudo era difícil, a menina não queria comer, quando comia, engasgava. Era um ser delicado, mas vingou.

Aos dois meses Alex estava fortinha, Rilda achou que podia respirar. Ledo engano! Ermenegildo, seu pai, tem uma morte sofrida depois de anos de invalidez e desatinos, seqüelas de um AVC. Olga, viúva e de luto, fica sabendo que tem câncer. O escritório de Amad pega fogo e o prejuízo foi enorme. Rilda arrasada, tentou trazer um pouco de luz ao ambiente sombrio e inventou um luto vestindo-se de branco. Achava que não faria bem para a criança olhar para as pessoas de preto à sua volta. A preocupação maior era tornar aquele ser mínimo, que dependia totalmente dela, uma pessoa educada, independente e responsável. A vida era muito dura, mas sua filha seria forte, mais forte do que ela se esforçava ser.

Alex andou cedo, falou cedo e logo tirou as fraldas. Alegrava a casa, entendia tudo que sua avó lhe falava em italiano, desafiava as ordens da mãe e brincava com o pai. Era uma menininha pequena no meio de adultos e com dois anos foi para o que seria hoje uma escolinha maternal. Foi bom para ela, que pode conviver com outras crianças e sair do ambiente pesado de casa.

Ao ver os seios de Olga mutilados em uma bandeja cirúrgica, Rilda desmaiou. Via a vida de sua mãe se esvair e o pouco alívio vinha das injeções verdes de morfina. Era preciso que alguém em casa aprendesse a aplicá-las e Amad se prontificou. Praticou no papo da galinha, fez uma sujeirada na cozinha, depois tentou numa laranja. Dina chorava de dor e ele teve de arriscar. Deu certo. Passou a fazer essa tarefa muito melhor do que o esperado. Ambos tinham senso de humor e se queriam bem.

No seu aniversário de quatro anos Alex foi mostrar o vestido novo para a avó que mal podia abrir os olhos. Dois ou três dias depois, a imagem do corpo sendo velado em cima da mesa na sala de jantar lhe assombrou os sonhos durante anos.Rilda sofreu as perdas, mas fez questão de não demonstrar. Amad sentiu a responsabilidade de ser pai, não queria que sua menina crescesse vendo os agiotas na porta a cobrar dívidas de jogo. Dedicou-se ao seu trabalho no banco, deixou de jogar e abriu uma camisaria como segunda fonte de renda. Rilda o apoiava em tudo, eram parceiros, amantes e ...pais. Bons pais.

Preciso Morrer

Os médicos que vem durante a noite não me deixam dormir. São tão atenciosos, todos de branco, parecem anjos. Pena que não entendem que eu quero descansar. Tantos remédios me viram o estômago, perdi o paladar; o que talvez me apetecesse, não me dão e eu tenho horror de galinha, só o cheiro me faz mal. Culpa de minha mãe que me obrigava a limpar, escaldar e depenar. Hum...que asco!

Essa menina é a pior acompanhante, dorme feito uma pedra, nem me ouve chamar. Minha filha não puxou a mim que posso passar a noite em claro com duas ou três xícaras de café. Coitada, hoje conversou tanto, mas seus olhos assustados olhavam para todo lado, menos nos meus olhos. Eu amo tanto essa menina. Pensa que me engana com os diagnósticos que inventa a cada exame e acha que eu não entendi que a cirurgia foi em vão: abriram e fecharam, agora é só esperar.

Aquele túnel que eu vi na UTI foi um aviso, eu não queria voltar.

Estou cansada. Hoje quando veio o chá, não consegui levantar a xícara e levar até a boca. Minha mão tremia, o braço pesava, eu perdia o controle. Não tenho mais dignidade, nem autonomia. Detesto quando eles entram aqui e me invadem como quem enfia a mão em um saco de batatas, reviram as cobertas, me desnudam, esquecem que tenho pudor . Falam comigo com uma voz forçada como se eu fosse uma débil mental.Fecho os olhos aperto os punhos e entrego tudo a Deus, ele sabe o que faz.

Vou tentar ir ao banheiro. Se eu não conseguir, é porque preciso morrer.